2024-11-20 HaiPress
O escritor nigeriano Wole Soyinka,Nobel de Literatura,que completou 90 anos em julho e diz que segredo da vitalidade é 'escutar o corpo' — Foto: Leo Martins
GERADO EM: 19/11/2024 - 19:07
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No início dos anos 1970,o escritor nigeriano Wole Soyinka passou a dar aulas em universidades inglesas e percebeu que,para seus colegas,a literatura africana era uma “besta mítica”: simplesmente não existia. Essa descoberta é rememorada no prefácio de “Mito,literatura e mundo africano”,livro que sai com quase cinco décadas de atraso no Brasil e reúne palestras proferidas na Universidade de Cambrigde entre 1973 e 1974. Em quatro textos,o autor apresenta divindades iorubá (com destaque para Ogum,Xangô e Obatalá) como figuras não apenas mitológicas,mas também literárias,como os deuses gregos. No quesito ético,os orixás levam a melhor,pois repararam as faltas que eles próprios haviam cometido.
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Primeiro africano a vencer o Prêmio Nobel de Literatura,em 1986,Soyinka é autor de uma obra vastíssima,iniciada na década de 1950,e que inclui dramaturgia,prosa de ficção,poesia e ensaio. No entanto,tem apenas quatro títulos disponíveis por aqui. Em 1972,ele publicou “The man died”,relato do tempo em que passou encarcerado a mando do ditador Sani Abacha,durante a guerra civil em seu país. Suas memórias da prisão inspiraram o filme homônimo que será exibido no dia 27 na abertura do Festival Internacional de Cinema do Leste da Nigéria,em Enugu.
Soyinka conversou com o GLOBO por vídeo de Abu Dhabi,nos Emirados Árabes Unidos,onde dá aula em uma universidade americana. O escritor defendeu a devolução de obras de arte africanas presentes em acervos europeus,desfez estereótipos sobre a suposta supremacia da coletividade nas culturas do continente e disse que chegou aos 90 anos de idade em boa forma,física e intelectual,porque sabe escutar o próprio corpo (e não os médicos).
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Como era a recepção à literatura africana quando o senhor proferiu as palestras reunidas em “Mito,literatura e o mundo africano”?
Acreditava-se que a literatura africana não passava de folclore. Isso começou a mudar quando aumentou a publicação de livros nos países africanos,já independentes. O que não quer dizer que antes já não houvesse uma atividade literária vibrante por lá. Apesar das ligações históricas,por conta do tráfico negreiro ou da religião,Brasil e Portugal demoraram a descobrir a literatura africana. Mas,quando a explosão começou,não parou mais. Da última vez que estive no Brasil (em 2023),fiquei impressionado ao ver tantos autores africanos nos catálogos das editoras.
O sincretismo brasileiro é citado em algumas passagens. Como o senhor avalia a contribuição brasileira à mitologia iorubá?
Uma das características da cultura e da espiritualidade iorubá é mudar de acordo com o ambiente,misturar-se com o que é estrangeiro e absorver a cor local. Veja o protagonismo de Exu no Brasil. Quando estive em Brasília,visitei um terreiro onde havia um mural enorme homenageando os orixás,e Exu era o maior deles. Exu é muito importante no culto iorubá,certamente,mas não é a divindade suprema.
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Por que Exu ganhou esse protagonismo no Brasil?
Exu é um orixá dialético,que ensina a avaliar diferentes possibilidades,pois uma mesma realidade tem múltiplos aspectos. Por ser a divindade da incerteza e um pouco malandro,o coitado foi eleito pelos missionários cristãos como o símbolo do mal,fizeram dele o bode expiatório de sua teologia. Na diáspora,os escravizados rebeldes encontraram nele um símbolo de resistência. Por isso ele é tão popular no Brasil.
Por que a espiritualidade iorubá é tão propensa ao sincretismo?
A mentalidade iorubá tem um princípio agregador,um espírito ecumênico,que não apoia cruzadas ou guerras santas e prega que não devemos forçar nosso sistema de crenças nos outros. Cada um precisa encontrar seu próprio caminho espiritual. Diferentes divindades podem habitar a mesma casa. Talvez por isso os orixás se adaptem tão bem às outras religiões,em vez de tachá-las de malignas,como fazem o cristianismo e o islamismo.
Ao contrário do que ocorria no Olimpo grego,até as divindades iorubás precisavam reparar as faltas cometidas. A ética dos orixás pode ajudar nos processos de reparar as violências da escravidão e do colonialismo?
Reparação não é só material,não é só dinheiro. Existem reparações simbólicas que são muito efetivas. Eu,por exemplo,prego o retorno dos artefatos africanos que foram roubados e estão em museus do Ocidente,pois representam a visão de mundo e a espiritualidade dos povos que os criaram. Devolvam tudo o que roubaram e poderemos encerrar essa história. A reparação também tem um aspecto econômico,como assistência tecnológica para corrigir as distorções da economia africana,mas isso é problema dos políticos. O que me interessa são a cultura e a espiritualidade.
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O senhor é filho de um pastor anglicano e de uma “cristã impetuosa”. Como se encantou pelo panteão iorubá?
Meu pai cresceu com os orixás,só se converteu ao cristianismo depois. Até mudou de nome,o que foi uma experiência muito triste,na minha opinião. Apesar disso,o ambiente continuou fortemente iorubá. O cristianismo e o culto aos orixás coexistiam,ainda que o primeiro fosse evangelisticamente agressivo,pregasse a dicotomia bem versus mal e dissesse que quem cultuava os orixás ia para o inferno,essas besteiras. Eu gostava de ir à igreja,cantava no coral e adorava os hinos cristãos. Mas também era uma criança curiosa,via as representações simbólicas das divindades iorubás e fazia perguntas,porque aquela espiritualidade me fascinava.
O senhor não via nenhum conflito entre a espiritualidade cristã e a iorubá?
Eu consegui formar minha própria opinião,fazer minhas próprias escolhas. Nas imagens dos santos nos vitrais da igreja,eu via os egungun (espíritos ancestrais),que são representados por máscaras coloridas. Os santos estavam nos vitrais,os egungun estavam nas ruas,numa festa colorida. Minha imaginação vívida transformava uns nos outros. Não havia conflito nenhum. Eu tive um tio,o pai do Fela Kuti (multi-instrumentista) — eu sou primo do Fela Kuti,você sabe,né? —,que era um cristão absolutamente comprometido. Ele não desprezava os orixás,mas incorporava um espírito ecumênico,misturava letras cristãs com melodias iorubás.
O senhor questiona a suposição de que a cultura europeia seria guiada por um “individualismo criativo” e a africana por uma “criatividade comunal”. O quanto há de estereótipo nessa oposição?
Quando falamos de África,estamos falando de uma rede de culturas muito complexas. Os xossas são diferentes dos iorubás,os jejes são diferentes dos axantes. Ainda assim,podemos falar de um paradigma cultural africano,no qual o coletivo é elevado acima do individual. Isso não quer dizer que o indivíduo não seja central na cultura africana. Um exemplo: em certos casos,antes que a criança receba um nome,suas características e tendências são cuidadosamente estudadas,pois elas indicam como ela vai se chamar e qual é sua divindade protetora.
O senhor completou 90 anos em julho e continua trabalhando. Qual é o segredo para manter a boa forma física e intelectual?
Todo mundo me pergunta isso e eu não sei o que responder. Talvez eu seja sortudo. Meu jeito de lidar comigo mesmo,tanto física como intelectualmente,é escutar o meu corpo,mesmo que isso signifique ignorar recomendações médicas. Meu filho é médico,ele olha pra mim e diz: “Pai,eu não entendo,você quebrou todas as regras que eu aprendi na faculdade e veja como você está!” Digo que vou doar meu corpo para o hospital onde ele trabalha,assim eles podem me estudar e descobrir o segredo da longevidade,porque eu não tenho ideia de qual seja.
Serviço:
‘Mito,literatura e o mundo africano’
Autor: Wole Soyinka. Tradução: Karen de Andrade. Editora: Zahar. Páginas: 232. Preço: R$ 79,90.