2024-11-29 HaiPress
'Comedian',do italiano Maurizio Cattelan,e 'Inserções em circuitos ideológicos',do brasileiro Cildo Meireles — Foto: Fotos de Kena Betancur/AFP e divulgação
GERADO EM: 28/11/2024 - 20:19
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Há cinco anos,Maurizio Cattelan comprou algumas bananas por cerca US$ 0,30 cada num supermercado de Miami. De lá,seguiu para a Art Basel Miami Beach,principal feira (no caso,de arte) das Américas — que,aliás,abrirá sua 22ª edição na próxima quarta-feira,no balneário americano. O artista então colou a fruta com uma silver tape na parede do estande da prestigiosa galeria Perrotin e a colocou à venda por US$ 120 mil (R$ 697 mil,na cotação atual).
A banana de US$ 6,2 milhões: O que o comprador realmente leva? Ele vai comer a banana? O que é arte conceitual?Marta Arruda: Conheça a artista,que trabalhou como soldadora e fez sua primeira escultura em um canteiro de obras
O que poderia ser interpretado como mais uma obra iconoclasta do italiano,conhecido por trabalhos como “America” (2016) — um vaso sanitário funcional inteiramente fundido em ouro 18 quilates,instalado no banheiro do Guggenheim de Nova York e roubado em 2019 ao ser exposto no Palácio de Bleinheim,na Inglaterra —,“Comedian” (“Comediante”) ultrapassou a crítica satírica ao mercado de arte e tornou-se um de seus grande ativos. No último dia 21,a obra foi arrematada por US$ 6,2 milhões (cerca de R$ 35,7 milhões) num leilão da Sotheby’s pelo empresário do mercado cripto Justin Sun.
Ainda que a cifra inimaginável atingida por uma simples banana tenha chamado a atenção dentro e fora do mercado de arte,o que Sun adquiriu,na verdade,foi o direito sobre a obra conceitual criada por Cattelan,com um certificado de autenticidade e instruções detalhadas para sua exibição adequada — inclusive para a sua substituição a cada vez que a fruta apodrece. Em uma edição limitada de três unidades (além da vendida em Miami,o outro exemplar foi doado ao Guggenheim-NY),“Comedian” é parte do mesmo movimento feito pelo francês Marcel Duchamp (1887-1968) quando enviou,em 1917,um mictório de porcelana assinado com o pseudônimo de “Richard Mutt”,batizado de “Fonte”,para a exposição da Sociedade de Artistas Independentes,em Nova York. Com um de seus célebres ready-mades,trabalhos criados a partir de objetos do cotidiano,deslocados de sua função original e convertidos em obra,Duchamp propôs que um objeto artístico poderia ser o conceito por trás dele e não apenas a sua fatura,numa das principais revoluções do setor no século XX.
'Comedian',de Maurizio Cattelan,vendida por R$ 35 milhões — Foto: Kena Betancur/Agência France-Presse
No Brasil,a arte conceitual ganhou força nos anos 1960 e 1970,entre outras razões,por fatores como o acirramento da repressão da ditadura militar,dadas sua liberdade experimental e as possibilidades de abordar questões que seriam inviáveis em técnicas e suportes mais tradicionais.
Com uma experiência bem anterior a Cattelan de expor comida em ambientes institucionais e mercadológicos — como “Um sanduíche muito branco” (1966),que consiste num pão francês recheado de algodão —,Cildo Meireles criou algumas das mais célebres obras da arte conceitual brasileira com suas “Inserções em circuitos ideológicos”,para a exposição “Information” no MoMA de Nova York,em 1970.
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'Trouxa de Sangue' (1969),de Artur Barrio — Foto: Divulgação
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'Inserções em circuitos ideológicos' (1970),de Cildo Meireles — Foto: Divulgação
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'Corpobra',de Antonio Manuel — Foto: Divulgação
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Nildo da Mangueira 'ativa' parangolé de Hélio Oiticica em 1967 — Foto: Divulgação/Arquivo de César e Claudio Oiticica
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'Brasil nativo/Brasil alienígena',de Anna Bella Geiger — Foto: Divulgação/Luis Carlos Velho
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Performance 'Xifópagas capilares',na Galeria Psicoativa,de Tunga,em Inhotim — Foto: Divulgação
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'Fonte/Primeiro amor',de Aleta Valente — Foto: Divulgação
Estilo cresceu no Brasil nos anos 1960 e 1970
Não apenas se apropriando de objetos cotidianos mas também devolvendo-os à sua circulação original,Cildo inseriu mensagens contrárias ao regime em garrafas de Coca-Cola (com instruções de como transformá-las em coquetéis molotov,por exemplo) e em cédulas,como as notas de Cruzeiro carimbadas como a frase “Quem matou Herzog?”,cobrando a responsabilidade pelo assassinato do jornalista em 1975,dentro das instalações do DOI-Codi,em São Paulo. Provando que o poder contestatório da série não se esgotou na ditadura,em 2019 o artista usou cédulas de R$ 2 e R$ 5 para questionar: “Quem matou Marielle?”
— Minha pretensão foi contrária à do Duchamp. Em vez de trazer o objeto para a galeria,queria que esse objeto voltasse modificado para o meio onde ele circula. O grande conceito por trás das “Inserções” é essa circulação — explica Cildo. — Naquele momento,isso significava dar voz a toda uma parte da sociedade que estava reprimida,por meio de mecanismos da sociedade que pudessem permitir esse fluxo de informações,de ideias.
Cildo Meireles e uma de suas obras sonoras,em seu ateliê — Foto: Fabio Rossi
Outro artista brasileiro a participar da célebre coletiva “Information”,Hélio Oiticica se tornou uma referência da arte contemporânea ao transcender a ideia do objeto de arte,trazendo o espectador para dentro da obra,no caso dos penetráveis,ou o transformando em parte dela,como na ativação de seus parangolés. Ainda assim,não gostava de ser associado ao termo “conceitual”,como lembra seu amigo Antonio Manuel,criador de obras como as “Urnas quentes”,caixas de madeiras lacradas que deviam ser arrebentadas pelo público,ou “Corpobra”,caixa acrílica com fotos do próprio artista posando nu no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio,em 1970.
— Nós conversávamos bastante sobre isso,e ficávamos com um pé atrás com o conceitual e a pop art. O que fazíamos era uma pesquisa de linguagem,queríamos trazer o corpo para a obra,a busca pelo sensorial — recorda Antonio Manuel. — Claro que havia um conceito por trás,mas estávamos interessados na presença,na atuação.
Entusiasta do trabalho de Cattelan,Antonio Manuel relembra uma visita à exposição “All”,em 2011,no Guggenheim de Nova York,na qual o italiano pendurou diversos objetos no teto do museu,criando uma espécie de inventário suspenso. Para o brasileiro,é interessante ver como “Comedian” foi uma crítica ao mercado de arte posteriormente apropriada pelo mesmo sistema.
— É uma obra muito forte,por ser um trabalho efêmero mas que também se renova,com a troca da banana. Vejo como uma forma de resistência a um sistema,do qual você tenta fugir de alguma forma — observa Antonio Manuel. — Ainda que a obra seja engolida pelo mercado,ele já havia dado essa primeira “banana” para o sistema,o recado estava dado. Tudo o que aconteceu depois também faz parte dessa ação de contestação.
Com uma individual recém-inaugurada na galeria Mendes Wood DM,e outra em cartaz no Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP),ambos em São Paulo,e participando da coletiva “Radical software: women,art & computing 1960-1991”,no Museu de Arte Moderna de Luxemburgo (Mudam),Anna Bella Geiger,de 91 anos,explorou a arte conceitual a partir dos anos 1960,quando se afastou da abstração informal do início da carreira e partiu para a sua fase chamada visceral. Trabalhando com múltiplos meios,como a fotografia,a escultura,o vídeo e a pintura,a artista criou séries como “Brasil nativo/Brasil alienígena”,em que se apropriou de cartões-postais representando de forma idealizada o povo bororo,do Mato Grosso,associando-os com fotos suas e de sua família,como forma de debater questões como identidade e preconceito.
— Tinha a questão da ditadura,de procurarmos formas de expressão,mas também já havia uma pesquisa de novas linguagens,de coisas que acompanhávamos da produção de artistas de fora — comenta Anna Bella. — Fazíamos tudo intuitivamente,e muita gente não entendia. Quando deixei a gravura e parti para um caminho mais radical,teve gente da abstração que deixou de falar comigo por não compreender direito aquela proposta.
Anna Bella Geiger em seu ateliê,no Flamengo — Foto: Leo Martins
Posteriormente,Anna Bella fez uma referência direta a Duchamp com a série “Rrose Sélavy mesmo”,na qual interferia em páginas de jornal,brasileiros e estrangeiros,com a aplicação de imagens e “camuflagens” em serigrafia sobre os textos. “Rrose Sélavy” era um alter ego feminino criado pelo artista francês,a partir do trocadilho com a frase “Eros,c’est la vie” (“Eros,é a vida”,referindo-se ao deus grego como sinônimo de erotismo).
— Usava as imagens do Duchamp como Rrose Sélavy,como uma figura feminina,por cima das capas,tirando partes das manchetes e das notícias,com as interferências. Eu nunca acrescentei palavra nenhuma,só retirava as da página deixando mensagens políticas de forma metafórica — conta a artista.
Outra artista a pagar tributo a Duchamp,demonstrando o impacto da arte conceitual na produção contemporânea,Aleta Valente levou à 14ª edição da ArtRio,em setembro,a obra “Fonte/ Primeiro amor”,composta de uma ducha higiênica afixada numa parede de azulejos. Remetendo ao mictório imortalizado pelo francês,o acessório de banheiro apropriado por Aleta traz um olhar feminino sobre o ready-made,como um objeto de descoberta sexual e prazer das mulheres,em casa.
— Foi uma coisa insana a mulherada que viu a obra na ArtRio e vinha me procurar. Muita gente falando que trouxe uma memória de infância e adolescência,outras dizendo que achavam que não sabiam que outras mulheres usavam a ducha dessa forma. Falavam que tinha o Duchamp e a “Duchinha” — diverte-se Aleta. — A arte conceitual tem esse poder de se comunicar imediatamente,quando se vê aquele objeto deslocado ele já ganha outro sentido. Para as mulheres,ao menos,foi assim com a obra.
'Fonte/Primeiro amor',de Aleta Valente — Foto: Divulgação
Reconhecido como um dos maiores representantes da arte conceitual no país,Cildo Meireles diz que se reconciliou com o termo nos anos 2000,após algum tempo de rejeição.
— Num determinado momento fiquei enfastiado,porque em qualquer exposição de arte conceitual que se ia tinha de ler aquele monte de textos de artista,que geralmente são chatos (risos). Tentei até me desligar disso,até que um amigo,que foi preso na ditadura,me disse que,quando entrava um palito ou um celofane de cigarro na cela,ficava imaginando o que eu e meus colegas poderíamos fazer com aquilo — conta Cildo. — Aí entendi como era um movimento livre,democrático,que permitia fazer arte com quase nada,sem depender de material ou espaço.