2025-02-12
IDOPRESS
O presidente americano Donald Trump — Foto: ROBERTO SCHMIDT / AFP
GERADO EM: 11/02/2025 - 21:02
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Se você acha que o tema é pedante — afinal,sou cancelado em alguns lugares —,experimente vestir uma roupa pelo avesso. Faça como eu,que vesti uma suéter pelo avesso nos Estados Unidos,país onde o mind your own business (cuide-se e não me encha o saco!) é dominante,e um colega que jamais me dera um humilde “bom-dia” parou-me no corredor para a advertir-me que eu estava com a veste pelo avesso!
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— Você deve estar só... — disse em seguida,com voz tranquilizadora porque sabia o que significava estar sem o outro que nos ama,ajuda e desentorta...
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O pai de um amigo foi internado com ataque cardíaco. Aos 88 anos,ele sofre de Alzheimer e foi socorrido num hospital público desenhado para mal atender pobre e preto. Depois dos rituais que Erving Goffman chamou de degradação e despersonalização,ficou ansioso e agressivo. Quando arrancou os acessos colocados em seus braços e tentou fugir,pois imaginou que havia sido preso,foi preciso amarrá-lo na cama — o que,obviamente,confirmou sua fantasia. Fantasia que se explicava porque a internação é uma poderosa inversão. Exige o controle e a neutralização dos elos emocionais rotineiros,produzindo o mesmo sentimento de vestir uma roupa pelo avesso. Não é banal substituir pessoas amadas por médicos e enfermeiros impessoais,que olham a doença mais que o doente,numa — reitero — poderosa inversão. A doença,como certos rituais de passagem,nos leva a um comportamento invertido.
Agitadíssimo,o pai de meu amigo ficou por três dias na emergência tentando escapar e dando imenso “trabalho” à mulher e aos filhos. Mas,quando sua única filha veio substituir os irmãos,ela promoveu um drama e apaziguou as aflições do pai que se considerava prisioneiro. A moça não usou remédio ou oração. Usou um poderoso mecanismo ritual que sociólogos comparativos como Goffman,Turner e Lévi-Strauss conhecem e estudam: a inversão que usa o isolamento obrigatório como agente de mudança,cura e transformação.
Assim que chegou ao quarto,a filha comunicou ao aflito pai que ela — e não ele — era a doente aprisionada e ele o livre visitante!
— Veja,papai. Estou amarrada depois do tombo que tomei. Sou grata por ter você ao meu lado,cuidando de mim...
O poder dos avessos — triviais nos ritos de passagem e nos cerimoniais de reversão político-social como o carnaval,conforme estudei em meu livro “Carnavais,malandros e heróis”,de 1979 — serve como solução para estados de angústia ou perigo,como revelam a literatura,o drama e os ritos.
Assim foi a noite dessa família aqui em Niterói. O mundo,entretanto,treme com as inversões de Donald Trump. Como um poderoso bruxo autocrático ranzinza,ele focaliza o lado perigoso e ambíguo das trocas. Pois,como revelou Marcel Mauss,trocar implica três,e não apenas as duas fases de dar e receber. Na reciprocidade de que tanto se fala sem saber,trocas de todo tipo implicam dar,receber e retribuir. Essa é a base da solidariedade que,paradoxalmente,nos obriga a retribuir os favores e obséquios que formam as cordas mais profundas da vida social. Dar,receber e retribuir com justiça constituem o cerne das sociabilidades e dessas misteriosas imposições do todo sobre as partes; da moralidade,do bem-estar e daquilo que chamamos de paz sobre a ansiedade,o primitivismo e a arrogância. Esses valores têm caracterizado as ações do presidente americano.
A brutalidade irmã de sangue da burrice,prima da ignorância e mãe do narcisismo promove a regressão ao isolamento num planeta interligado que sofre os efeitos da hiperconectividade. Brincar de transformar comércio em guerra acaba em guerra.
No nosso Brasil,que os políticos e juristas recriam dia a dia,a maior,a mais visível e a mais rotineira inversão é ficar rico,poderoso,isento de cumprir leis,dedicando-se ao santificado projeto político de cuidar dos pobres.