2024-09-12 HaiPress
A cantora Elis Regina na sacada do Hotel Copacabana Palace em 1965 — Foto: Arquivo Editora Globo / Agência O Globo
GERADO EM: 12/09/2024 - 04:30
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Resumindo a coisa toda,penso há um tempo que os seres humanos se dividem em finitos e infinitos. Conheço muitas pessoas finitas e poucas realmente sem fim,e analisá-las sob essas duas condições parece ter se tornado uma mania depois que escrevi um artigo sobre isso pela primeira vez,em 2018. Não consigo sair de um encontro,uma entrevista,um casamento ou da plateia de um show sem refletir: “O.k.,essa é das finitas” ou “uau,quanta infinitude”. Mais cedo ou mais tarde,os finitos,como o nome diz,acabam. Os infinitos,nunca. Os primeiros,que não necessariamente são piores do que os segundos,realizam-se dentro de padrões sociais e,em geral,vivem mais,são materialmente mais prósperos e mais satisfeitos. Os segundos são movidos por tormentas e seus prazeres parecem alimentados por insatisfações insaciáveis,mas sua relação temporal é diferente. Um ano na vida de um infinito significa três no calendário que conta os dias de uma vida ordinariamente finita.
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Ser infinito não é uma condição especial dos iluminados. Entrevistando gente de toda espécie,posso dizer que há muitos ilustres que já bateram com a cabeça no teto há anos e muitos anônimos que não apresentam nenhum sinal de esgotamento. E aqui começamos a especificá-los. Infinito não é o imortal da ABL nem o vencedor de Grammys. Não tem a ver com a obra que ele produziu nem com a relevância de seus feitos. Isso é ontem. O que será deixado para a história não lhe é preocupação. Isso é amanhã. O que vale para um infinito é a eternidade de uma ideia que,mesmo quando projeta futuro,é vivida no agora. Glória,apogeu e realização são valores que não duram ali dentro mais do que 24 horas. Infinitude é uma condição que se experimenta em vida. O resto é especulação.
Infinitos não acabam porque seus mundos internos foram transformados em terras de colheita intermináveis. Por lerem livros,eles leem também plantas,animais,olhares,vozes,filmes,sorrisos e céus. Abrem-se a tudo que os emociona,não se acostumam com a beleza do pôr do sol,se entregam a uma canção que não conhecem,dançam em qualquer lugar e contam com uma capacidade raríssima não de falar de si mesmo (o desespero dos finitos) mas de ouvir o que diz o interlocutor pelo prazer de irrigar com ele seus alqueires interiores. Não são perfeitos. Infinitos são imprevisíveis,irresponsáveis,inconquistáveis e,por tudo isso,inconvenientemente apaixonantes. Eles sempre partem.
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Elis Regina me fez pensar muito enquanto segui seus passos para lançar sua biografia,em 2015. Aqui,não falo de música. A infinitude de Elis estava em tudo. Ao entrar em um açougue,pedia licença ao balconista e cortava ela mesma os bifes na espessura de que os filhos gostavam. Escrevia cartas aos amigos sem clichês e fora de datas especiais como se compusesse poemas,fazia camarão na moranga com a mesma entrega com que cantava “Como nossos pais”,vestia-se sem respeitar códigos da moda ou da contra moda e passava bilhetes por debaixo da mesa para viver uma paixão proibida.
Da mesma forma,o lado B de sua infinitude não tinha reservas. Discos de ex-maridos voavam pela janela em finais de casamento e possíveis cantoras concorrentes eram desativadas de forma nada simpática. Elis poderia ter sido uma cabeleireira ou uma dentista que seria igualmente inesgotável. Foi chamada pelo próprio marido,Ronaldo Bôscoli,de ciclotímica. Hoje,a classificariam com algum grau elevado de bipolaridade e a medicariam. Antes disso,morreu na manhã do dia 19 de janeiro de 1982,depois de viver,pelo calendário dos infinitos,por longos 108 anos.